quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Crônicas de Alcy Cheuiche

As cores da Bandeira Rio-Grandense
  Eleito patrono dos Festejos Farroupilhas de 2011, uma das primeiras perguntas que a imprensa me fez foi: O que o senhor pretende fazer durante as comemorações? Pregar idéias, respondi. A primeira delas sobre o verdadeiro significado da Guerra dos Farrapos.
            Depois de muitos anos convivendo com o tema, não tenho a menor dúvida de que os farroupilhas lutaram contra o Império e não contra o Brasil. Já no primeiro manifesto após a tomada pacífica de Porto Alegre, publicado no dia 25 de setembro de 1835, Bento Gonçalves deixa bem clara essa posição. A luta era conta o arbítrio dos prepostos imperiais, que haviam fechado pelas armas a nossa Assembléia Legislativa (instalada há apenas três meses), contra a corrupção, contra o abandono do Rio Grande do Sul do ponto de vista administrativo: sem estradas, sem escolas, sem poder judiciário. É preciso também não esquecer que a nossa independência tinha apenas treze anos e estava ameaçada pelos restauradores, por aqueles que desejavam a volta dos portugueses e eram chamados de “caramurus”. Tanto isso é verdade, que o barco que levou Fernandes Braga, o presidente da província, em sua fuga para Rio Grande foi escoltado por navios de guerra de Portugal.
            A palavra farroupilha, ao contrário da crença geral, não surgiu no Rio Grande do Sul e sim no Rio de Janeiro. Chamava-se “A Trombeta Farroupilha” um jornal que defendia os excluídos e lutou pela queda de D. Pedro I, em 1831. Esses liberais, que pregavam a República, eram geralmente maçons e atuaram em diversas províncias brasileiras. Foram eles que tentaram tirar Bento Gonçalves da Fortaleza da Laje, na entrada da Baía da Guanabara e conseguiram sua evasão na Bahia. Foram eles que agitaram também Minas Gerais e São Paulo, dentro do projeto de criar repúblicas nas diversas províncias brasileiras e uni-las numa federação chamada Brasil.
            Quando os farroupilhas mandaram tropas para Santa Catarina (leia-se os lanceiros negros de Teixeira Nunes e os marinheiros de Garibaldi), em julho de 1839, Bento Gonçalves escreveu um artigo no jornal “O Povo” explicando que o plano era subir o mapa e apoiar todas as novas repúblicas brasileiras. Se não fosse assim, o certo era fechar as fronteiras e só pensar na República Rio-Grandense, tão carente de recursos para sua própria sobrevivência.          
            Do ponto de vista simbólico, porém, basta olhar as cores da Bandeira Rio-Grandense para entender que os farroupilhas não eram separatistas. Se o fossem, por que manteriam as cores verde e amarela? A faixa vermelha é a cor republicana tradicional. Nada mais simples de entender. O verde-amarelo do Brasil, mas com o vermelho da República.
            Essa é a verdade histórica. Que deve ser ensinada em todas as escolas brasileiras. Com a derrota dos farroupilhas, o projeto republicano foi adiando por meio século. E já chegou exaurido em 1889. Que foi mais um golpe de estado do que uma conquista popular.

Nós e a Legalidade
                                                                                                Alcy Cheuiche

  Eu queimei a língua, como se dizia. Uma semana antes da renúncia de Jânio Quadros, afirmei a meu pai, veterano das revoluções de 1930 e 32: nossa geração não faria o que vocês fizeram. Ele sorriu e disse simplesmente: nós também pensávamos assim, até ver o povo gaúcho brigando para entrar no trem de Getúlio Vargas. E minha mãe completou: as moças até vaiavam nas ruas os rapazes que não se apresentaram como voluntários.
            E eu vi, naqueles onze dias da Legalidade, colegas que só pareciam interessados nos bailes da Reitoria carregando faixas contra o golpe. Vi funcionários da Carris, com seus uniformes de trabalho, fazendo ordem unida e marchando em direção ao Piratini. Vi a fantástica unidade da Brigada Militar, nenhuma deserção em seus quadros, garantindo a façanha de Leonel Brizola. Ouvi pelo rádio o apelo do jovem governador, suas palavras que tocavam em nossos brios, que nos convocavam para impedir o golpe dos ministros militares. E fiquei ombro a ombro, na frente do Palácio, com homens e mulheres, de todas as idades, que dali não se afastaram, nem mesmo com as ameaças (muito reais) de bombardeio aéreo.
            Até hoje, quando penso no Hino da Legalidade, é com a voz da minha avó materna que recordo as palavras que nos empolgavam: avante, brasileiros, de pé, unidos pela liberdade! Lembro dela, com mais de oitenta anos, os cabelos muito brancos, pegando sua bolsa e dizendo para os netos: se vocês não me levarem para a praça, eu irei sozinha. E ela foi e estava lá conosco quando Brizola e Machado Lopes apertaram suas mãos, selando a união civil e militar que garantiu a posse de João Goulart como Presidente da República.          
Que opinião posso dar hoje, meio século depois, sobre o desfecho desse fantástico movimento popular? Eu tinha vinte anos, passara muitos dias com um revólver Colt 38 na cintura, o mesmo que meu pai usara em 1930 e 32, e ansiava por levar João Goulart até Brasília. E fiquei estupefato, como a multidão de cinquenta mil pessoas que o esperava na Praça da Matriz, quando ele apenas acenou e não disse uma palavra, nem de agradecimento, ao povo que se dispusera a morrer por ele.
Durante a longa viagem da China ao Brasil, Jango, que era um político experiente, discípulo de Getúlio Vargas, deve ter avaliado que nessa marcha para empossá-lo correria muito sangue (o que as últimas reportagens de ZH mostram que era verdade). Ele preferiu não empolgar mais a multidão e, mesmo podendo ser chamado de covarde, aceitou o caminho da conciliação. E assumiu com menos poderes num regime parlamentarista aprovado às pressas pelo Congresso Nacional.
Com vinte anos, eu jamais poderia aceitar aquele conchavo. Com setenta, penso que, se não fosse o bom senso de João Goulart, talvez eu não estivesse aqui para contar esta história.

Grenal no Maracanã
                                                                                                  Alcy Cheuiche
O futebol é um dos poucos esportes coletivos, talvez o único, em que o pior pode ganhar do melhor, e até com facilidade. E nisso reside seu charme. E, por isso, a Fifa não aceita juízes eletrônicos. Os erros do juiz e dos bandeirinhas fazem parte da regra do jogo. Mexem com a lógica da partida e, por essa e outras razões, como dizia Ildo Meneghetti, futebol não tem lógica.
Em 16 de julho de 1950, o Brasil estava pronto para ser campeão do mundo. Ninguém jogaria um níquel, como dizia a minha Vó Jenny, na vitória dos uruguaios. E deu no que deu. Éramos muito melhores, e eles nos esmagaram em pleno Maracanã.
Domingo que vem, naquele mesmo estádio, cujo nome recorda um periquito em extinção, o Brasil vai tirar uma dúvida a respeito dos gaúchos. Se o Grêmio entrar em campo para perder do Flamengo, é melhor que os responsáveis por isso esqueçam do hino rio-grandense. Pois não basta para ser livre, ser forte aguerrido e bravo, povo que não tem virtude, acaba por ser escravo.
Acima de qualquer paixão futebolística, está em jogo a honestidade, o fio de bigode, a vergonha na cara. E não me venham com essa de que razões históricas sempre nos separaram em grupos irreconciliáveis: farroupilhas e caramurus, picapaus e federalistas, chimangos e maragatos. Em 1930, os maragatos de Assis Brasil se uniram aos chimangos de Getúlio Vargas para que pudéssemos derrubar a República Velha, carcomida por vícios eleitorais e pela corrupção. Rio Grande, de pé pelo Brasil, foi a frase de Getúlio que mobilizou os gaúchos de todas as crenças.
No Maracanã, domingo próximo, o Grêmio vai decidir se é gaúcho ou não, se é guerreiro para enfrentar cem mil flamenguistas ou prefere se encolher para prejudicar o Internacional. Duvido que se acovarde. Principalmente se mandar para o Rio de Janeiro jogadores e dirigentes com a alma tricolor, capazes de honrar a garra e o panache de Osvaldo Rolla, o Foguinho imortal.
Gostaram do meu discurso? Alguém ainda tem dúvida? É claro que eu sou colorado.
Quero ficar só...
                                                  Alcy Cheuiche*

Com a frase acima, Beppino Englaro, pai da jovem italiana submetida à eutanásia, pediu alguns momentos para sofrer em paz. Mas não os terá, certamente. Ele ousou desafiar preconceitos milenares e vai pagar por isso. Queira ou não queira, continuará sendo usado como messias ou bode expiatório das duas correntes que são contra ou a favor do direito de morrer. Na Itália, lideradas, neste momento, de forma antagônica, pelo presidente Giorgio Napolitano (a favor) e pelo primeiro-ministro Silvio Berlusconi (contra).
Eutanásia, do grego eu, bem, e thanatos, morte, significa morte sem sofrimento. Duvido que haja um único médico no mundo que não a tenha usado, de forma leve ou extrema, para abreviar o sofrimento, apressar um pouco a morte de um paciente terminal. Mas eles não podem revelar esses atos humanitários, felizmente reconhecidos in extremis pela própria lei. Afinal, foi a Suprema Corte da Itália que deu ganho de causa à família Englaro para que a eutanásia fosse praticada.
Vejamos em síntese o caso clínico da infeliz Eluana. Em 1992, aos 21 anos de idade, após um acidente automobilístico, sofreu morte cerebral e ficou em estado vegetativo. Ou seja, seu cérebro morreu e, com ele, toda sua identidade humana, suas lembranças registradas desde que nasceu ou foi concebida, como queiram os adeptos de outra polêmica sobre os direitos dos fetos e embriões. Desde essa primeira morte, Eluana ficou dezessete anos à mercê de um sistema artificial de alimentação e hidratação, que, finalmente foi desligado, permitindo a seu corpo o descanso final.
Um arcebispo da igreja católica, conforme a imprensa italiana, ameaçou de excomunhão a quem interviesse para desligar os aparelhos de Eluana. Outras igrejas cristãs, como sabemos, proíbem seus crentes até de praticarem uma simples transfusão de sangue, para não contrariarem os projetos de Deus. Duas posições extremas, no meu entender, e ambas erradas, porque não consideram a opinião médica, a lei e o desejo final do paciente.
Neste caso, Beppino Englaro explicou muitas vezes a razão porque a família lutava pelo direito de desligar os aparelhos. Ele afirma que Eluana disse, alguns dias antes do acidente, que não desejaria ser mantida em vida se lhe ocorresse um fato semelhante. Absurdo? Premonições como esta não são raras, embora ainda sem explicação, nem científica, nem religiosa.
Diante de tudo que ouvimos e lemos até agora, a solução que nos parece mais coerente é a de colocar na carteira de identidade de cada cidadão sua opção ou não pela eutanásia, junto com a que damos autorização ou não do uso de nossos órgãos para transplante.
Assim, nenhum Berlusconi ou Napolitano, daquela ou destas plagas, irá nos usar para seus projetos políticos que, esses sim, podem estar acima da vida e da morte do cidadão comum.

                       Adeus a nossa mãe
                                                 Alcy Cheuiche*

Ela nunca perdeu a ternura, mas foi uma mulher valente. Sob uma aparência frágil, ocultava um temperamento guerreiro. Nunca sentia medo, nem de raio, nem de cobra, nem de aranha, nem das dificuldades da vida. Cedia a todos os caprichos de seus entes queridos, mas jamais transigia com seu código de honra. Não erguia a voz, mas sabia dizer, quando necessário, a última palavra.
Zilah Maria Tavares Cheuiche nasceu no sobrado de seu avô, o Barão de Santa Tecla, na cidade de Pelotas. Era o dia 18 de maio de 1914 quando sua mãe, Jenny Garcia Tavares, deu à luz àquela menina mimosa. Cabelos negros, pele clara, lindos olhos castanhos. O pai, Alfredo da Silva Tavares, carregava em si a têmpera de uma família histórica, desde a Revolução Farroupilha. Filho de barão, neto de visconde, era engenheiro civil com curso de pós-graduação em Paris. Junto com aquele sobrado, herdara a ideologia maragata dos federalistas de 1893.
Com nove anos de idade, em outubro de 1923, mamãe foi despertada pelos latidos de seu cachorrinho Tim-Tim e também ouviu um tiroteio. Logo seu pai entrou no quarto e lhe disse: fica tranqüila, é o General Zeca Neto que está invadindo Pelotas. Eu e o Joaquim vamos juntar-nos aos revolucionários.
Joaquim, Tecla, Luiz e Janino eram os seus irmãos mais velhos. Amava a todos, com predileção recíproca pelo último, homem do campo, como ela sempre foi. Mas sua primeira paixão foi pelo pai, que a criou a sua imagem e semelhança: discreta, inteligente e forte. Depois, aos vinte anos de idade, já morto o nosso avô, transferiu essa paixão ao esposo, Alcy Vargas Cheuiche, um tenente veterinário, nascido em Caçapava do Sul, que lutara nas revoluções de 1930 e 1932. E manteve esse amor pelo marido, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, a cada dia, a cada hora, em sessenta e quatro anos de casamento.
Mamãe nasceu em Pelotas, mas era alegretense por opção afetiva. Tinha 31 anos ao aqui chegar, em 1945, quando nosso pai, promovido a capitão, veio servir no Sexto Regimento de Cavalaria. Tinha 94 anos quando seu coração parou de bater, aqui nesta mesma terra de Alegrete, neste domingo de sol, 28 de dezembro de 2008. Nunca optou por morar em outra cidade, como Porto Alegre, Rio de Janeiro ou Brasília. Aqui firmou suas raízes, aqui educou a todos nós.
Em Alegrete nasceu o Luiz Antônio e ela se orgulhava muito disso. E vibrou, da sua maneira discreta, quando, em 2004, no centenário do nosso pai, Lais, Lilia e eu, por generosidade da Câmara de Vereadores, recebemos nossos títulos de Cidadãos Alegretenses.

Nossa mãe era tão singela, tão despida de vaidades, que não a podemos descrever com superlativos. A imagem que me vem à mente é sempre a mesma. Uma árvore quase centenária que tomba, mas suavemente, sem machucar ninguém, quase sem ruído. E com ela também arrasta para a terra seus galhos, suas folhas e frutos, os ninhos dos pássaros, todas as manifestações da vida.
Nossa mãe, avó e bisavó acaba de morrer, depois de passar conosco seu último Natal. Mas as crianças que somos, ou vivem dentro de nós, como dizia o Mario Quintana, vão continuar vivendo. E lembrarão sempre da sua generosidade, da sua paciência com todas as nossas falhas. Da sua preferência pelos humildes. De seu apoio incondicional a todas as causas do “General da Educação”.
Sem jamais subir ao palco, Zilah MariaTavares Cheuiche participou de todos os atos comunitários, de todos os sonhos de progresso social e econômico de Alegrete, curando as feridas do guerreiro que foi o nosso pai. E agora, novamente ao lado dele, é mais uma semente de ouro, de amor e paz, depositada na terra que ela tanto amou.


Ideias não são metais que se fundem
Alcy Cheuiche*

Discute-te sobre o deslocamento dos restos mortais de Gaspar Silveira Martins de Bagé para a cidade gaúcha que recebeu seu nome. Não em definitivo, é claro, que isso os bageenses jamais tolerariam. Mas assim como um “passeio histórico” para honrar o grande político brasileiro em data de importância para a comuna de Silveira Martins.
            Não vou entrar na polêmica sobre a conveniência ou não de mexer com os despojos do líder federalista. Mas fiquei fascinado com a oportunidade que o fato nos dá de recordar seus feitos e, principalmente, suas idéias. Pois isso, acima de tudo, define sua biografia. Um pregador de idéias. Uma mente poderosa a serviço da liberdade e da democracia.
Silveira Martins foi o líder intelectual da Revolução Federalista de 1893 que enfrentou a ditadura de Julio de Castilhos, legalizada pela Constituição de 1891, escrita pelo próprio Castilhos. Isto é, legalmente, o poder executivo tinha poderes ditatoriais. Mas nem sempre o que é legal é justo. E foi em busca da justiça que Silveira Martins, Joca Tavares, Gumercindo Saraiva e tantos outros líderes rio-grandenses lutaram contra a deturpação do regime republicano.
            A República nasceu no mundo, todos sabemos, sob a égide do lema “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”. Assim, se não há liberdade de eleger seus dirigentes, se não há liberdade de criticá-los nos bares, nos lares, nos  parlamentos, na imprensa, mesmo se essas críticas forem injustas, não há regime republicano. Numa república, existem mecanismos para defender o cidadão contra o estado e o estado contra o cidadão.   Para os reis absolutistas, vale sempre lembrar, qualquer crítica era uma ofensa lesa majestade, qualquer opositor um candidato à prisão ou à morte. L’état c’est moi, disse Luís XIV, quando um ministro alertou-o de que suas ordens contrariavam as leis do estado, as leis da França. Com essa frase, esgotou a possibilidade de uma monarquia democrática no seu país, como existe hoje na Espanha, por exemplo, e incentivou a revolta que iria mais tarde derrubar a bastilha e guilhotinar Luís XVI.
            Chegando legalmente ao poder na Venezuela, mas depois de uma tentativa de golpe militar, Hugo Chaves está seguindo a risca a cartilha para transformar-se de presidente em ditador. Começou governando com um parlamento livre e agora governa por decreto. Foi eleito com liberdade de imprensa e agora não aceita a mínima crítica ao seu governo. Qual é a ideologia do nosso Presidente que o chama de democrata e companheiro, discursa como se ainda fosse um líder operário, mas propicia aos bancos os maiores lucros da história do Brasil? Qual a ideologia de quem tenta fundir em seu governo as idéias antagônicas e muitas vezes oportunistas de onze partidos políticos?
            Idéias não são metais que se fundem, disse Gaspar da Silveira Martins. Porque, segundo ele, só se fundem nas caldeiras da ditadura e da corrupção.

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